domingo, 26 de março de 2017

Colóquio

--Ó Amada Solidão
Que rasgais meu coração...
Não tendes dó, piedade!
Assemelhai-me ao meu Amado!!!
Perfurai também meu costado!

--Como pretendes, impostor,
Assemelhar-te ao Salvador?
Onde a misericórdia, o amor
Para jorrar do teu lado?...
De um coração tíbio e pecador
Só pode manar, horror,
a fealdade do pecado.

--Ó Solidão Amada,
que me humilhais com a verdade.
Dai-me a Paixão assim mesmo,
Eu vos peço por favor.
Sem merecimento a mereço,
Pois não é mais
Que o mestre o seu discípulo
Nem o servo que o seu senhor.
Nisso não há falsidade!

Dai-me a agonia, o sangue,
O suor, o sofrimento
As cadeias, a ignomínia,
O opróbrio, o desapreço,
Condena de um celerado,
Humilhação, látego, espinhos,
Duras pedras no caminho
E no madeiro pesado
O peso dos meus pecados
Mais pesados do que o mundo...
--Ah, isso não, que eu sucumbo:
Ajudai-me Cirineu!

--Oh, não sois Simão, sois Jesus
A carregar-me com a cruz!!!

--Vede, ó Solidão Amada,
Quem à semelhança convida.
Não é senão o Caminho,
A Verdade, a própria Vida,
A Palavra que não passa!
Pregai-me já os cravos,
abri-me agora as chagas,
Suspendei-me, levantai-me,
Exponde-me ao desabrigo,
ao vento e ao sol causticantes,
E ponde à minha boca,
Na esponja, fel e vinagre.
Matai logo minha sede
De, nesse mundo agreste,
Assemelhar-me ao meu Mestre.
Nem recuseis a pedida
Que me recusastes antes,
Chagai-me também o meu lado,
Pois embora eu não mereça
Não haja quem disso esqueça:
Superabundou a graça
Onde abundara o pecado.

***

--Em Vossas mãos, ó Senhor,
Quero entregar confiante
Meu espírito que, relutante,
Carente ainda de humildade,
Hesita ante a sorte
E rejeita essa morte:
Morrer eu para mim mesmo.

***

--Ó, Solidão Amada,
Não quero viver a esmo
Sobrevivendo assim.
Tende santa piedade
deste pobre pecador.

Quebrai-me os ossos da vaidade
E eu morra logo pra mim
Antes que a noite desça.
Não ocorra que eu padeça
A morte na eternidade.
Dai-me a vida de verdade,
Vida que é o meu Senhor!